31 de agosto de 2009

Dona Júlia e seu egoísmo assassino - parte1

Eram oito horas do horário de verão numa cidadezinha do interior do Paraná quando se ouviram os primeiros dobres histéricos do sino da igreja única no coração da vila central, batendo convidativamente pelos fiéis para se apresentaram a missa e, curiosamente, a invitar também Dona Júlia, que acabara de nascer. Seus pais, o Sr. José e a Sra. Gertrudes haviam planejado tudo detalhadamente para o nascimento da filha que era esperada pela família inteira dos progenitores como promessa auspiciosa de dias melhores para os famigerados Sem Terra (não tão famigerados na ocasião), que, na eminência de uma reforma agrária prometida, já se punham a procriar e procriar contando com o ovo, que talvez um dia, sabe-se quem, viria.

Foi numa sexta-feira o ocorrido, a qual viria a ser ensolarada e atingir picos de 32°C sob um céu de lilás infindo, um belo de um ensejo para nascer, uma maravilha de dia para todos, um ato de altruísmo abnegado involuntário, raro, único, por parte da nenê Dona Júlia.

Já na sua fase lactente, Dona Júlia apresentava índices de um egoísmo latente. Não dividia nada com ninguém, nem seus sorrisos, nem suas palavras, nem seus brinquedos. A Sra. Gertrudes teve muita dificuldade para educar menina com tal ego. Um gênio terrível de menina má que foi crescendo e se mascarando dentro de seu corpo fechado para o mundo.

4 de agosto de 2009

Efêmera - Parte 2

Essa era a brincadeira deles: sacanear mendigo. Eles chamavam o ato de dar esperança temporária. O mendigo olhava faminto para a fruta oferecida e caminhava, como se estivesse hipnotizado, hipnotizado de fome, caminhava sem pensar, apenas se lançava em direção ao que lhe era oferecido, algo que poderia saciar seu apetite por alguns instantes. Mariana, a mais despojada das três meninas, estava ali, com o seu rosto passando seriedade, impassivo. Fria como o olhar de um chinês que opta em matar a filha recém-nascida, pois precisa de um menino pra poder ajudar no trabalho. Fria como a atitude dos responsáveis pela liberação do gás de ácido cianídrico nas câmeras dos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau. O mendigo fitava com água na boca o amarelo-banana. Às vezes Guto desacelerava, deixava o mendigo chegar bem próximo da banana, fazia isso só para provocar Mariana, fazia isto para ver se ela se assustava. Mariana só balançava a banana e repetia, docemente:
- Essa banana vai acabar com teu apetite, querido. Pode pegar, é tua. Vem aqui pegar.

De dez, sete mendigos sempre entravam na piada. De dez mendicantes, sete se sentiam tentados pela carnuda fruta de mentira e a fitavam com água na boca, figurativamente falando, e as seguia incansavelmente como o burro, que procurava abocanhar, sem pensar, a cenoura que foi pendurada numa varinha um pouco a frente de seus olhos, distante o suficiente para ele não alcançá-la. Os demais não se importavam, ou melhor, não caiam na tentação da fome. Na verdade alguns não tinham a mínima força para se movimentar, fracos, permaneciam jogados pelo chão, sem vida, num estado de debilidade muscular completo. Outros, mais vigorosos, recém-mendigos, simplesmente surtavam. De dez sem-abrigos, um sempre surtava. O “Yes Lazy” havia surtado. Surtou não porque notou o humor negro dos jovens. Surtou não porque se sentia injustiçado no país. Surtou não porque perdeu sua família fazia cinco anos exatamente naquele dia. O recém-mendigo surtou, pois estava com muita fome. O pai alcoólatra surtou, pois estava sóbrio e assim sentia novamente sensações fisiológicas comuns. O faminto sem-teto diante da banana de cera que não descascava. Surtou.

2 de agosto de 2009

Efêmera - Parte 1

O texto a seguir não é uma piada. É um conto, se é que posso chamar assim. Uma história quase real.


Mariana balançava a banana no ar. Balançava suavemente segurando em um dos extremos de uma generosa banana prata de cera. Balançava e desenhava círculos imagináveis no ar num certo sincronismo com as palavras que proferia ao mendigo, que olhava, faminto:

- Vem cá, vem. A banana é tua se você pegar. Vem pegar, vem.

Ela estava dentro de um carro vermelho, mas não um vermelho Ferrari, muito menos um vermelho sangue, o carro era de um vermelho maça-do-amor, um vermelho lápis de cor. Quem o dirigia era Guto, dirigia o carro do pai, o qual sempre entregava a chave na mão do menino quando ele dizia que estava a sair com as amigas. O pai se enchia de orgulho. No outro dia, como se fosse uma rotina mantida de bom grado pelo progenitor, vasculhava o carro atrás das camisinhas que havia plantado, maliciosamente, e com bastante cuidado, em diversos locais do carro. Até então, sempre as encontrou no mesmo esconderijo, trazendo um sorriso amargo ao seu rosto, um breve sorriso de merda.

Claro, onde Guto e Mariana estivessem, Patrícia e Gisele teriam que estar também. No automovel estavam os quatro. Guto mantinha o Polo, da Volkswagen a uma velocidade constante, como se o carro andasse assim como se caminha quando se está atrasado para chegar a um compromisso. Mariana permanecia estirada pela janela, com a banana a balançar. Olhava com cara de paisagem, um olhar asentimental - permitam-me o neologismo – direcionado para o mendigo.

O mendigo aparentava ser jovem, as principais características dele podem ser resumidas em duas palavras: mau cheiro. Não que o pedinte fedesse literalmente, embora cheirasse como um tísico após duas enchentes e três dias nublados com sua roupa no corpo, mas, o que caracterizava o seu mau cheiro eram seus detalhes. Barba grossa e bem espalhada, como um bom companheiro de esquerda, consegue imaginar um soviet? então imagine. Olhos enormes com a esclerótica tão amarela quanto os seus dentes, que se resumiam em seis, talvez mais, depende do que podemos considerar um dente, levando em consideração o estado de putrefação do mesmo. Seus lábios eram rachados, carnudos, tanto o lábio superior, como o inferior. Aparentava ser negro, tinha um nariz amassado, com narinas razoavelmente grandes. Sua cor de pele era parda e tinha uma volumosa quantidade de pêlos nos braços, os quais estavam duros de pó. A camiseta que usava deixava à mostra ligeiramente a sua barriga. A roupa era pequena para o seu tamanho, com uma estampa que alegorizava o mendigo por si só. Com o repentino crescimento da procura por roupas de estilo surf, diversas indústrias têxteis brotaram com criações similares com as vistas por indústrias da Austrália ou mesmo norte-america, que fomentam este mercado, porém a similaridade pára no contexto, não se atendo a minúcia. As indústrias brasileiras que buscaram plagiar a idéia de surf wear produziam camisetas com uma imagem de onda ou de um surfista ou de uma prancha ou algo que remetia a praia, a vida no mar, com uma frase escrita em inglês, que remetia a imagem estampada, raramente a frase era escrita gramaticamente correta. “No Work, Yes Lazzy”- essa era a idéia que continha na camiseta.

Tudo acontecia num posto de gasolina desta vez. Após abastecer o carro, buscar algumas cervejas de marca importada na loja de conveniência, comprar dois maços de cigarro, um pacote de chiclete sem açúcar, mas com aspartame, para enganar o cheiro do fumo, o grupo viu no sujeito barbado um bom alvo para passarem o tempo. Mariana estava no carro com uma safada ansiedade.